Como o Santos vai disputar o mundial em menos de 50 dias, gostaria de entrevistar um jogador que tivesse participado do jogo último título em 1963, o 1 a 0 contra o Milan, no Maracanã. Para isso, recorri ao grande místico Zé Cabala, supremo correio dos espíritos, competentíssimo MSN das almas.
José Roberto Torero
Quando preciso entrevistar algum jogador que já enxerga a grama pelo lado da raiz, recorro ao grande místico Zé Cabala, supremo correio dos espíritos, competentíssimo MSN das almas. Foi o que fiz ontem.
“Há quanto tempo, nobre foliculário”, disse ele quando me viu chegar à porta de sua casa. “Quem vamos entrevistar hoje? Um craque? Um grande artilheiro? Se você estiver pensando num dirigente honesto, vai ser mais caro, que esses são difíceis de achar.”
Pouco depois estávamos em sua sacrossanta sala de meditação transcendental, que gente incrédula e sem lustro chamaria de quartinho dos fundos. Enquanto ele ajeitava o turbante, expliquei que, como o Santos vai disputar o mundial em menos de 50 dias, gostaria de entrevistar um jogador que tivesse participado do jogo último título em 1963, o 1 a 0 contra o Milan, no Maracanã.
Mal ouviu meu pedido, Zé Cabala começou a se concentrar, apertando tanto seu turbante que ele desceu sobre seus olhos. Então, de repente, deu nove giros ligeiros, uns passos de frevo, e, caindo na poltrona, disse com saboroso sotaque recifense:
“Almir Pernambuquinho, às suas ordens.”
Fui direto ao assunto: “É verdade que o senhor tomou anfetamina na final do Mundial de 1963?”
“Claro que é. O bicho era de dois mil cruzeiros. Dava para comprar um Volkswagen zerinho. E era normal tomar uns negócios para correr mais. Ainda mais que não tinha exame antidoping naquele tempo. Mas você acha que os caras do Milan não tomaram umas bolinhas? Claro que tomaram! Mas hoje em dia todo mundo posa de santo...”
“Naquela partida, o senhor jogou no lugar do Pelé?”
“Ele estava machucado. Eu peguei a camisa numero dez mais famosa do mundo e fiz uma promessa a mim mesmo: ‘Vou jogar por mim e pelo Negão’.”
“E o juiz estava comprado mesmo?”
“Olha, um dirigente do Santos disse que eu podia bater a vontade que o juiz não ia fazer nada. Mas o pênalti que eu sofri foi pênalti mesmo. É só olhar a imagem. É que ninguém vê. Vocês do esporte só ficam repetindo o que o que os outros jornalistas falam. Aí alguém disse que o pênalti foi cavado e todo mundo repete isso até hoje. É assim que mentira vira verdade.”
“E as brigas?”
“Bom, isso não é invenção, eu brigava mesmo. Desde o meu primeiro título, pelo Sport, em 1955. A gente ganhou o campeonato pernambucano juvenil, mas na final teve um garoto que me xingou o jogo todo. Quando a partida acabou, botei as chuteiras nas mãos, que nem luva de boxe, e fui atrás do sujeito.”
“Depois do Sport, o senhor foi para o Vasco?”
“Isso. Foi nessa época que começaram a me chamar de Pelé Branco. Mas o apelido que pegou mesmo foi dado pelo Nelson Rodrigues: Divino Delinquente.”
“Depois do Vasco...”
“O Corinthians me comprou por uma fortuna. Mas não dei sorte por lá. Só fiz cinco gols em 29 jogos. Então fui para o Boca Juniors, onde fui campeão argentino em 1962, depois dei uma passada por dois times da Itália, fui para o Santos, daí para o Flamengo, e acabei no América.
“Na seleção você não deu certo?”
“Nunca gostei de seleção. É coisa falsa. Os jogadores trocam porradas em seus times e lá parecia que nada tinha acontecido. Eu não aceito isso, não.”
“A sua briga mais famosa foi na final de 1966, não é?”
“É.”
“Dei uma pesquisada no Google e lá está escrito que o senhor começou a briga para que o Bangu não desse a volta olímpica.”
“Esse tal de Google inventa mais que vizinha fofoqueira. Não foi nada disso. É que um jogador do meu time, o Paulo Henrique, começou a se desentender com o Ladeira, do Bangu. Eu fui lá tirar satisfação. Quando o Ladeira me viu chegando, saiu correndo. Eu fui atrás dele. Para dar uma surra mesmo. No meio do caminho, o nosso zagueiro Itamar, um mulato de um metro e noventa, deu um salto e meteu o pé com vontade no peito de Ladeira. Ele caiu, eu vinha na corrida, fui logo chutando. O Ladeira saiu de maca e eu fui expulso.”
“Mas não foi só isso.”
“Não. Isso foi só o começo. Quando eu estava entrando no túnel, um dirigente do Flamengo gritou para mim: ‘Almir, volta lá e tira o Ubirajara do jogo!’. Ubirajara era o goleiro deles. Então eu dei meia volta e saí correndo atrás do Ubirajara. Aí foi uma briga generalizada. Soco e pontapé para todo lado. O juiz expulsou mais quatro jogadores do Flamengo e quatro do Bangu. Acabou a partida.”
“Até sua morte foi por causa de uma briga, não é?”
“Foi. Em 1973, eu estava num bar chamado Rio-Jerez, em frente à Galeria Alaska, no Rio de Janeiro. Estava com uma namorada e um casal de amigos. Na mesa da frente estavam os atores daquele grupo, os Dzi Croquetes, todos maquiados ainda. Numa outra estavam três portugueses que começaram a xingar os atores de veados e paneleiros. Eu resolvi defender os atores. Começou um bate-boca. Um dos portugueses sacou um revólver, meu amigo sacou outro e tiroteio começou. Uma bala entrou na minha cabeça. Foi meu último cartão vermelho.”
Saí da casa do nobre xamã com uma entrevista e uma certeza: Se o Santos quiser ser campeão mundial, tem que brigar. Mas sem perder a cabeça.
José Roberto Torero é formado em Letras e Jornalismo pela USP, publicou 24 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti e Livro do ano em 1995), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti 2004) e, mais recentemente, O Evangelho de Barrabás. É colunista de futebol na Folha de S.Paulo desde 1998. Escreveu também para o Jornal da Tarde e para a revista Placar. Dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Como fazer um filme de amor. É roteirista de cinema e tevê, onde por oito anos escreveu o Retrato Falado.
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