sábado, 27 de fevereiro de 2010

Cultura, culturas, natureza, culturas - Carlos Rodrigues Brandão

Cultura, culturas, natureza, culturas
Carlos Rodrigues Brandão

A criação da cultura
De duas maneiras podemos entender a criação da cultura pelos seres humanos.
Em uma direção, a cultura representa o processo e os produtos do trabalho na transformação da natureza dada a nós, em um mundo significativo, intencionalmente criado por nós. Trabalhos, ciências, tecnologias, artes, das mais arcaicas às mais atuais, desde as que praticam as nossas sociedades indígenas até as criadas mais recentemente pela empresa neo-capitalista, eis os processos e os produtos da cultura em sua sempre continua interação com o mundo natural. A casa construída em qualquer lugar é um produto do trabalho humano de criar cultura através de processos culturais que envolvem as mais diferentes tecnologias de relações com forças, energias e matérias da natureza. Práticas sociais fundadas em principias de conhecimentos de diferentes ciências. Isto vale para uma aldeia indígena da Amazônia e para uma grande cidade do América Latina ou da Europa. Criar cultura é transformar intencionalmente a natureza, dotando de sentido e de valor o ato transformador e o produto da transformação. Somos o que criamos, ao gerar o mundo onde sobrevivemos e nos transformamos a nós mesmos... culturalmente.
Pois, na outra direção, o mais importante trabalho da cultura é o que os seres humanos realizam sobre eles mesmos. Somos a única espécie que transcendeu o domínio das leis biológicos impressas geneticamente sobre cada um e todos os participantes de um grupo de seres vivos, para criar um mundo de relacionamentos fundado sobre regras sociais. Macacos se unem a uma fêmea. Nós nos casamos com uma mulher que, filha de alguém, se transforma em nossa esposa, mãe de nossos filhos, avó dos netos e madrinha dos afilhados.
Somos uma espécie única de criadores de técnicas de ação, e também de regras do agir, de códigos de conduta ou gramáticas de relacionamentos interativos. E somos também criadores dos contos, dos cantos, dos mitos, dos poemas épicos, das idéias, dos imaginários e das ideologias, das ciências, das filosofias, das espiritualidades e das religiões. Se foi um deus amoroso quem nos deu “os dez mandamentos”, fomos nós quem inventamos tanto as palavras quanto a vida social que deu sentido a eles. Enfim, somos ao mesmo tempo os criadores e os servos de uma variedade de sistemas de sentido com que continuamente nos dizemos a nós mesmos quem somos e quem não somos. Quem são os outros que não são “nõs”. Qual a origem de nosso mundo, da vida e de nós mesmos. Como se deve ser diante de cada outro. E como cada tipo de individuo natural — como o macho e a fêmea — transformados culturalmente em categorias de sujeitos sociais — como homem e a mulher, o marido e a esposa, a mãe e a filha, o jovem e o ancião, o nativo e o estrangeiro — devem se colocar diante do “outro” e devem se relacionar com ele. Com “eles”.
Assim, a cultura é e está nos atos e nos fatos através dos quais nos apropriamos do mundo natural e o transformamos em um mundo humano. E ela está também nos gestos e nos feitos com que nos criamos a nós próprios, ao passarmos — em cada individuo, em um grupo humano ou em toda a nossa espécie — de organismos biológicos a sujeitos sociais. Ao criarmos socialmente os nossos próprios mundos e ao procurarmos dotá-los e a nós próprios e aos nossos destinos de algum sentido. Somos aquilo em que nos transformamos ao continuamente transformarmos o mundo natural de que somos parte e de que vivemos.
A cultura está mais no que e no como nós nos dizemos palavras, idéias, símbolos e significados entre nós, para nós e a nosso respeito, do que nós fazemos em nosso mundo, ao nos organizarmos socialmente para viver nele e transformá-lo. Eis um belo sentido da idéia de nossa liberdade. Ao levarmos a vida do reflexo à reflexão e do conhecimento à consciência, nós acrescentamos ao mundo o dom gratuito do espírito. Com ele, nós nos tornamos senhores do sentido e criadores de uma vida regida não pelo instinto impresso na biologia do corpo da espécie, como entre nossos irmãos animais, mas pelo símbolo, pelo saber e pelo sentimento tornado mito e rito.
Somos uma espécie única que, ao longo de toda a história da humanidade e também em cada pequenino momento da vida cotidiana, estamos a todo o tempo criando e recriando as teias e as tramas de simbolos e de significados com o que buscamos respostas ás nossas perguntas. Com que estabelecemos sentidos para as nossas vidas, consagramos principios para a nossa múltipla convivência e nos impomos códigos e gramáticas de preceitos e regras para podermos viver no único mundo que nos é possível: uma sociedade humana e as suas várias culturas.

Diferenças, desigualdades
Pois as culturas são múltiplas. Foram e são inúmeras nos tempos da história e nos espaços da geografia humana. Somos a única espécie que, munida de um mesmo aparato biopsicotógico, ao invés de produzir um único modo de vida, ou modos de ser muito semelhantes, geramos quase incontáveis formas de ser e de viver, como tipos de sociedades e de culturas.
Durante muito tempo estas diferenças culturais foram pensadas como desigualdades entre culturas. De que maneira? Seguindo tradições da Grécia antiga, os modos de ser “do outro” costumavam ser classificados como: “primitivos”, “selvagens”, “bárbaros”. Ainda hoje, muitas vezes, pensam-se e se classificam povos e suas culturas desta maneira. Tomando o modo de ser ocidental, branco e europeu de ser como um padrão de civilidade e de desenvolvimento cultural, todos os outros eram avaliados como situados em algum ponto anterior de uma espécie de “evolução” inevitável e diferenciada da humanidade. Ciências, sistemas jurídicos, artes, religiões, enfim, modos sociais de se ser, pensar e viver de povos das Amêricas, da Ásia, da Oceania e da África, eram distribuídos em escalas de “evolução cultural” com graus quantitativos e qualitativos de “atraso” ou de “primitivo”, diante de um padrão de “civilização” representado, quase sempre, por algum sistema cultural “erudito e civilizado”de atribuição de identidade.
Sabemos hoje que nada disto corresponde à verdade. Cada cultura é uma experiência única, irredutível a qualquer uma outra. Cada sistema cultural vive o seu próprio tempo em seu próprio ritmo. Cada cultura possui uma coerência interna em todos os seus planos e em todas as suas dimensões de realização. Portanto, cada cultura somente pode ser compreendida em toda a sua experiência, “de dentro para fora”. Isto é, do interior de sua própria lógica para qualquer outra.
Entre o que podemos chamar de “cultura tapirapé”. “cultura aymara”, “culturas de tradições afro¬americanas” e “culturas brancas de tradição européia nas Américas”, existem formas qualitativas de diferenças de realização e, não, graus quantitativos de desigualdade evolutiva tradutível como mais ou menos “primitiva” ou “civilizada”. Os cientistas da natureza humana (biólogos, geneticistas, paleontólogos) não encontram razão alguma que justifique uma diferença que signifique uma verdadeira desigualdade qualitativa entre as diferentes “raças humanas”, cujo equivalente cultural são as inúmeras etnias do passado e do presente da humanidade. Assim também os cientistas sociais não afiliados a alguma visão evolucionista estreita, não encontram motivos para classificar as culturas dos diferentes povos da terra segundo qualquer escala hierárquica típica dos olhares do passado.
Simplesmente não há escalas, não há uma “trajetória do selvagem ao civilizado, passando pelo bárbaro”, não há um eixo central de onde as culturas partem e não há um ápice cultural que todas devem inevitavelmente atingir. Existem diferentes vocações culturais e esta diferença não é um acidente transitório a superar. Ela é a própria realização de uma vocação humana à liberdade, na criação continua da diversidade das experiências humanas de vida e de sentido da vida.
Sem qualquer eixo universal de determinação de direções únicas, as culturas humanas possuem situações de origens diferenciadas. Possuem trajetórias de interações com a natureza e com outras culturas também diferentes. Possuem, finalmente, ritmos de transformações e vocações de realização de si mesmas e de seus sujeitos, também diferenciadas. Esta é também a razão pela qual hoje em dia dizemos que existem inúmeras experiências partilhadas, logo, socioculturais, de Deus, do sagrado e da religião, que em nada poom ser classificadas como “primitivas”, “atrasadas”, “falsas” ou “evoluidas”, “verdadeiras”. Cada uma delas realiza no tempo e no espaço uma vocação humana da experiência do sagrado. E é mais através de suas diferenças em direção a horizontes humanos comuns, do que por meio de suas igualdades forçadas, que elas se comunicam através do diálogo fraterno entre os seus diferentes crentes e praticantes.
E os próprios sonhos e ideais humanos, como a busca universal da paz, como o destino ao amor, à partilha solidária da Terra, como a procura incessante de construção de um único mundo justo, fraterno e não-excludente de pessoas, de povos e de experiências culturais, há de ser uma convergência entre pessoas, povos e culturas diferentes pela escolha de seus caminhos, e absolutamente igualados quanto aos direitos humanos de trilhá-los com passos de seres humanos livres, participantes, solidários e felizes. Fernando Pessoa diz isto: “tudo o que existe é diferente de mim. E por isso tudo existe”.

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